Antes, um recado,
Querida pessoa leitora, há algumas semanas venho tentando escrever esse texto, como se trata de um tema que muito me é caro, posterguei o quanto pude para tentar dedicar o devido tempo. No entanto, o tempo de escrever não chegou (como normalmente não chega, preciso tomar de assalto), mas é chegada a hora, e o feito é melhor que o perfeito, ainda mais diante do fato de que, nessa semana, no dia 23 de maio, o artista que contemplo nesse texto inaugura a turnê do seu sétimo álbum e, apesar do ceticismo, há um algo a mais no número sete.
[Sim, o texto é grande, e deixei separado por capítulos, caso queira ler um por vez. Se você lê pelo e-mail, basta clicar na mensagem que ela aparece completa no navegador.]
É um artista cuja história se mistura com a minha. Nascemos no mesmo ano, conforme ele foi avançando na sua carreira e vivendo as contradições de ganhar dinheiro vindo de onde veio, também o fiz (em escala bem mais contida, evidentemente). Posso dizer que acompanho seu trabalho desde o embrião, desde quando ouvia suas primeiras músicas baixando do Soundcloud, convertendo arquivos para mp3 e passando para o celular, como os Incas faziam, ou indo aos pocket shows dos MCs de BH, em pistas de skate ou sob viadutos da Região Metropolitana, onde ele ainda fazia apenas uma participação, mas já chamava minha atenção. Sem mais delongas, aqui está um passeio ( pois não chega a uma viagem) pela obra de Gustavo, sete vezes Djonga, e felizmente, ele continua com muita fome.
P.S. Se der, leia no computador, veja os vídeos, vai com calma.
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CAPÍTULO 2 - O LADRÃO DA HISTÓRIA
CAPÍTULO 4 - ELE AINDA ESTÁ COM FOME
CAPÍTULO 1 - DE HEREGE A DEUS
Nos idos dos anos 2000, Eduardo, ou o falecido Dumdum, escrevia as linhas de O menino do morro, que viriam a compor uma faixa marcante no igualmente impactante álbum lançado em 2003, Direto do campo extermínio, um dos mais lembrados do Facção Central, grupo de rap formado em São Paulo no fim da década de 80.
Sou traficante intocável pro tribunal
O que no foguete da NASA faz safári sideral
Tô na lista VIP dos cassinos clandestinos
Quer ser presidente? Traz a campanha que eu financio
Sou poderoso chefão, mas invisível como ar
Se pá o pastor da Universal atrás do altar
O apresentador que te dá casa com mobília
O sertanejo do CD de platina
Vai ver, seu time tem meu logo na camiseta
Você compra no meu shopping, voa pela minha empresa
Sou uma história de sucesso tipo Aristóteles Onassis
Só que eu subi uma escada de sangue pra primeira classeO menino do morro virou Deus
O poderoso chefão, a majestade
O teste da guerra ele venceu
Subiu uma escada de sangue pra primeira classeO menino do morro - Facção Central, do álbum Direto do Campo de Extermínio

Em meados de 2018, Gustavo escrevia os versos de Junho de 94, que viria a compor o segundo álbum de estúdio do então já conhecido Djonga, seu nome artístico, após a chegada marcante no mainstream com o álbum Heresia, no ano anterior. Esse segundo álbum ganharia o nome: O menino que queria ser Deus, que alude a um duplo da versão do menino do morro do Facção Central.
Tentando dar meu melhor na minha pior fase
Sabe como é, menor
Feridas se curam com o tempo, não com gaze
E quando ganhei meu dinheiro eu perdi a base
Logo eu que fiz gritos pros excluídos
Tiração pros instruídos
Chegar aqui de onde eu vim
É desafiar a lei da gravidade
Pobre morre ou é preso, nessa idade
Saudade quando era chinelin no pé
E quase nada pra te provar, camará
Minha vó falou que Deus é pai, não é padrasto
Então ele me pôs de castigo pra pensar
Fazendo famílias sorrir de norte a sul
Eu fiz minha família chorar e ficar sem norte
Nessa vida pouca coisa faz sentido
Só que ainda eu não tô pronto para a morte
Hoje eu acordei meio Renato Russo
Querendo recuperar o tempo perdido
Ela diz que ainda é cedo pra chorar
O mundo 'tá tão complicado pra esses pais e filhos
O seu herói não consegue voar
Virei a porra do vilão que vocês criaram
Cedo demais mirei as estrelas
E foi na porra da minha testa que eles miraramPorque o menino queria ser Deus
Queria ser DeusJunho de 94 - Djonga, do álbum O menino que queria ser Deus

No seu livro Neurose de Classe, Vincent de Gaulejac, em certo ponto, debate algumas teorias sociológicas e psicológicas sobre o personagem Goliádkin, protagonista do romance O Duplo de Dostoievski, sob a luz das questões de transições de classe. Conforme Gaulejac resume:
Nesse livro, Dostoievski conta a história do Sr. Goliadkin, "conselheiro titular'': ou seja, o tipo convencional de funcionário público mediano, que se sente perseguido - "tenho inimigos cruéis que juraram me perder". Ele deseja desposar Clara Olsufievna, filha de Olsufii Ivanovitch, que considera seu protetor e benfeitor. Mas é outro que se beneficia dos favores da moça, e ele é expulso da casa da cortejada depois de tentar arrombar a porta. É nesse momento que aparece o duplo, que representa o que Goliadkin não quer ser (vencedor, bem falante, intrigante, hipócrita e mentiroso), mas que tem sucesso onde ele fracassa principalmente na conquista dos favores dos superiores hierárquicos e da família de seu antigo protetor. Quanto mais Goliadkin se vê rejeitado (é demitido do emprego, posto em quarentena por todos os amigos, abandonado pelo criado), mais seu duplo aparece, ao mesmo tempo, como aquele que consegue obter a amizade dos que o rejeitam e como principal instigador de sua degeneração, a ponto de organizar a última cena que levará Goliadkin ao asilo psiquiátrico na presença do conjunto de seus "inimigos”.
Gaulejac apresenta duas leituras sobre o fenômeno de desdobramento da identidade desse personagem, que tem sua identidade colocada em conflito ao lidar com esse duplo que carrega aspectos de si mesmo, que ele não consegue integrar. Uma delas é a interpretação sociológica de Yves Barel:
"Ser perseguido por seu Duplo é ainda assim triunfar, quando uma verdadeira vitória de si sobre si e de si sobre os outros parece, daí para frente, ridiculamente impossível". O duplo é aquele que pode ser bem sucedido por procuração, que obtém os favores do poder e realiza com sucesso todas as baixezas e intrigas necessárias para satisfazer as aspirações sociais de Goliadkin. Assim, este pode transformar seu fracasso e se tornar a vítima expiatória de seu Duplo triunfante. Essa imagem de si, que ele ama e detesta, é tirada dele mesmo, já que não consegue atingir a posição que ela encobre. "Finalmente, Goliadkin se desdobrou porque é a única 'solução' que encontrou para o problema impossível que consiste em alimentar uma ambição social sem ter os meios necessários" . Por trás dessa impossibilidade está a fragmentação social que surge como elemento determinante dos problemas de Goliadkin: uma sociedade que põe em tensão, de um lado, "indivíduos ou grupos sociais e, de outro, os papéis sociais aos quais estão confinados."
Gaulejac emenda que essa,
leitura considera o desdobramento como consequência de uma situação social na qual o indivíduo deseja se tornar uma coisa que não é em relação à posição social que ocupa e dos papéis sociais que sua condição lhe confere. Como não pode satisfazer suas ambições sociais e não chega a pôr em andamento estratégias psicossociais que lhe permitam realizar as mediações necessárias para enfrentar os conflitos de pertencer a dois grupos sociais antagônicos, o indivíduo se desdobra, e o caráter patológico desse desdobramento é interpretado como uma das formas de expressão dessa situação. O desdobramento é uma reação às contradições sociais: "Ele é encontrado onde a prática social lida com paradoxos"
Convoquei todo esse prelúdio teórico pois creio que ele faz a costura desse duplo de Gustavo e Djonga e dos conflitos que o acompanhariam ao realizar essa transição de classe e assumir o lugar desse outro bem sucedido que há alguns anos Djonga é.
Não trouxe uma faixa do álbum Heresia, mas sim Junho de 94 que abre O menino que queria ser Deus, porque creio que Gustavo e Djonga aparecem ali cruzando uma ponte, e, de certo modo, se despedindo. É uma música essencial e profética sobre as contradições que ele viveria com o sucesso, que havia apenas se iniciado com o primeiro álbum.
Assumir essa posição é incorporar os conflitos de pertencer a dois mundos, duas classes diferentes, carregar para os salões do sucesso o menino que usava chinelin no pé e não tinha nada pra te provar camará. Mas que agora está desdobrado entre dois mundos, os dois que cobram a sua fidelidade a um certo conjunto de hábitos.
Ao mesmo tempo que é gritos pros excluídos, é Tiração pros instruídos, para estes precisa provar o tempo todo que merece estar nesse novo lugar, para aqueles precisa garantir que ainda é o Gustavo que escuta sua vó, mas o que vejo nesses versos é o menino-homem que Deus pôs de castigo pra pensar. Com apenas um ano do seu primeiro álbum de estúdio, Gustavo Djonga percebeu que estar em evidência para ele seria se tornar um eterno alvo, este seria o preço de mirar cedo demais as estrelas, e se expor tão jovem às possibilidades de ser herói e de ser vilão.
Goliadkin e Gustavo tinham aspirações, mas muitas vezes é mais fácil aspirar do que realizar, pois criticar o sistema sem ter que apertar sua mão e sorrir, dói muito menos. Estar do outro lado do muro é se questionar se, ao atingir suas aspirações de sucesso, você não deixou suas raízes pelo caminho nas pequenas concessões de cada dia.
O menino do morro que virou Deus do Facção Central, se assemelha mais à ideologia de um sucesso distante e pouco palpável e, por isso, o autor não corre o risco de realizar esse sucesso e lidar com as suas contradições. Um traficante, o anti-herói da alta sociedade que, por portar o produto que todos querem, consegue se infiltrar nos altos círculos sociais e controlar tudo como um jogo de marionetes. Nem Eduardo, nem Dumdum se tornaram isso, apesar de ser essa a imagem de sucesso nas favelas, que povoou o imaginário deles nos anos 90.
Gustavo, que se tornou Djonga, não virou Deus, mas queria ser Deus, e esse futuro do pretérito é essencial nessa leitura. Quando lançou esse álbum em 2018, as perspectivas do rap da sua geração, apesar de sustentadas pelos alicerces do Facção Central, Racionais, RZO, SNJ e outros mais, já eram bastante diferentes daquelas dos seus ídolos. As dinâmicas dos monopólios das gravadoras e do raro alcance do público pelas rádios havia sofrido uma profunda mudança com a internet e a chegada das redes sociais.
As possibilidades que se abriram diante disso, porém, foram acompanhadas dos contras de uma outra era, a da super vigilância, a da super exposição, a do cancelamento. Querer ser Deus, vindo de onde veio, nesse cenário, lhe custaria caro, Djonga nem imaginava o quanto. Gustavo criou Djonga, e o sucesso do seu duplo colocou um alvo nas suas costas.
Assim Djonga chegou em definitivo na cena, herege e Deus, homem e menino, 2017 e 2018, anos que também marcam contrastes profundos na história do Brasil recente. Heresia termina com a faixa O mundo é nosso, uma espécie de manifesto do homem, do povo e da cultura preta, realçando a realeza literal e simbólica, na música, na dança, com a voz de BK pontuando o refrão que carimbou uma ideia, o mundo é nosso. Heresia termina com um manifesto de esperança, O menino que queria ser Deus começa com uma carta de realismo, essa dualidade marcaria a carreira de Djonga, sagrado e profano, divino e humano, demasiado humano.
Como se fosse a noite, cê vê tudo preto
Como fosse um blackout, cê vê tudo preto
São meus manos, minhas minas
Meus irmãos, minhas irmãs, êh
O mundo é nosso
O jovem Gustavo que era exceção, a partir dali, tornaria-se regra.
Em qualquer esquina, em qualquer lugar, alguém gritaria, alguém pixaria, FOGO NOS RACISTAS, e todos saberiam que um fã do Djonga passou ali.
CAPÍTULO 2 - O LADRÃO DA HISTÓRIA
Deus e o diabo, Djonga! Em 2019 ele chegou com seu hat trick, o terceiro álbum em três anos, no já esperado 13 de março. Data esta que se tornou uma marca da chegada dos seus álbuns. Na faixa de abertura do seu terceiro álbum, Ladrão, Djonga volta como Rei, mas o Rei que saiu para buscar no território dos seus algozes o que era seu por direito. Nesse contexto, traz a história
Da terra onde nada vira
Um mano do nada vira
A maior referência de um jogo
Onde saber quem joga mais
Vale mais do que pôr comida no prato
Djonga se estabeleceu no território e viveu de perto as suas contradições, a tentativa de embranquecimento de MCs, a tentativa de descrédito da sua obra, a busca por agregar os seus para se tornarem seus sócios. Tudo isso enquanto sorri e aperta mãos de quem, sem a fama, teriam lhe virado a cara. Realmente, parece um filme de terror na direção de Jordan Peele.

O alvo é para onde aponta o dedo, seja o dedo apontado na infância, do menino subjugado, criminalizado pela classe e pela cor, até o dedo apontado na fama, onde a classe alta em que ingressou do alto do prédio reza pelo seu fim. Ou pior, até o dedo dos seus iguais temendo o seu não, esperando o seu sim. Independente das regras desse jogo que se apresenta, Djonga chegou para tomar de assalto, trazer de volta, não só a riqueza material, mas a riqueza simbólica de saber quem é e se orgulhar disso.
O dedo
Desde pequeno geral te aponta o dedo
No olhar da madame eu consigo sentir o medo
Cê cresce achando que cê é pior que eles
Irmão quem te roubou te chama de ladrão desde cedo
Ladrão
Então peguemos de volta o que nos foi tirado
Mano ou você faz isso ou seria em vão
O que os nossos ancestrais teriam sangrado
De onde eu vim quase todos depende de mim
Todos temendo meu não, todos esperam meu sim
Do alto do morro rezam pela minha vida
Do alto do prédio pelo meu fim
Ladrão
No olhar de uma mãe eu consigo entender
O que pega com o irmão
Tia, eu vou resolver o seu problema
Eu faço isso da forma mais honesta
E ainda assim vão me chamar de ladrão
Ladrão
O álbum segue com o desenvolvimento dessa narrativa de tomar de volta o que é do seu povo, sem se perder, mas segue também sendo um reflexo do seu tempo. Em BENÉ ele recorda, no país onde a facada que não aleja, elege, afinal, estamos em 2019. Em LEAL ele se permite mais melódico, viver outra história de amor. O Djonga humano, já pai do Jorge, também tem o direito de respirar fora desse mar de fama, contradições, reparação, neuroses de classe.
Todo esse respiro não tira o fôlego do LADRÃO, do Lampião, daquele que questiona a superficialidade das relações virtuais, mas se mantém fiel aos que não desacreditaram desde o começo. Para atravessar essa estrada ele pede BENÇA à vó que ocupa esse lugar central na sua espiritualidade e no seu simbolismo de ancestralidade. Djonga voou alto, FALCAO, sobre aquele ano, o seu ano, satisfeito mas com um olho sempre aberto, pois se todos te olham fica mais fácil perder o foco no que está acontecendo ao redor.
As Histórias da Minha Área vieram em 2020, no esperado 13 de março, quase em conjunto com a pandemia de COVID-19. O álbum apresentava um certo caráter de coleção de crônicas dos becos por onde Gustavo circulou, um retorno às paisagens familiares para reestabelecer o laço do Djonga com o quê e com quem realmente importava, após quatro anos de sucesso absoluto, fama, e todas as distorções que isso é capaz de provocar em alguém que vive essa ascensão social meteórica.
O dinheiro, infelizmente, não ressuscita os amigos que perdeu na rua, em Não Sei Rezar ele canta como uma reza, pelos que ficaram no passado do Gustavo. Há um tom melancólico nessa versão de Djonga, nas escolhas dos samples que compõem os beats do Coyote. Em contraste aos graves pesados e os baixos marcantes de LADRÃO, todo em caps lock, as histórias da sua área vêm minúsculas, como muitas vezes são reduzidas as vidas dos seus protagonistas.
Em Hoje não, um pouco mais dessa tragédia colada à história do país é trazida à tona, com um clipe nostálgico em que ele circula pela cidade com o Coyote, enquanto, em uma história paralela, uma menina (que poderia ser a menina Ágatha - ou tantas outras - morta pela polícia em uma Kombi no Complexo do Almão, em 2019) consegue escapar do seu fim trágico e criminoso pelas forças policiais. HOJE NÃO, aparece na tela. Essa pausa melancólica marcada por esse álbum seria um prelúdio para um ano menos falcão para Djonga e para todos nós, principalmente os mais pobres, naquele início de pandemia.
Assim Djonga dominou a cena, mudou o eixo do rap para Belo Horizonte e, claro, chamou a atenção demais para criar incômodos em muitos que não queriam ver alguém como ele ali. Continuaria o seu embate interno, em que tentava ser o Gustavo, com os mesmos gostos de carne com quiabo e jogar bola na sua área, mas conciliar isso com o Djonga que consumia os produtos das marcas e das pessoas que outrora foram seus algozes. A porção humana do menino que queria ser Deus também falava alto, como fala em cada um de nós.
CAPÍTULO 3 - NU, NO SEU LUGAR
Em 2020 o Rei ficou NU, ou, no ato de conquistar o mundo, esqueceu o prato da vingança ficar tão frio, que serviram sua cabeça em uma bandeja. Não podendo cancelar o seu CPF quando novo, na primeira ocasião, tentaram sacrificar o artista. Parecia que não havia limites para o falcão Gustavo, primeiro indicado brasileiro ao BET Hip-Hop Awards, saiu em uma matéria no Jornal Nacional, chegou no topo, que é onde as piores partes do território da fama se tornam mais visíveis.
No fim de 2020, em ampla vigência da pandemia de COVID-19, Djonga fez um show no Complexo da Maré no Rio de Janeiro, e sofreu uma onda de cancelamentos e críticas na internet , chegando a se afastar das redes sociais por alguns meses. Apesar das pessoas nas redes exibirem e exigirem um comportamento estritamente correto e sem margem para nuances, como é próprio do ser huamno, a vida real não é assim e as desigualdades promovem realidades bem distintas para cada grupo social.
Foi o que Djonga revelou algum tempo mais tarde na sua entrevista para Lázaro Ramos. No convívio com os seus, com o povo da sua área, com as pessoas que não tinham o privilégio de ficar em casa, ele ouviu reclamações da vida real. O pobre, o favelado continuaram trabalhando de segunda a sábado, normalmente, sem isolamento, e no fim de semana, não poderiam se reunir para ter um mínimo de lazer, enquanto os boys se reuniam nos seus círculos sanitários isolados e podiam curtir, comer e beber do bom e do melhor, enquanto o pobre que reivindicava esse lazer era cancelado.
Sob esse espectro, Djonga justificou seu show. Se fosse para fazer, faria no meio do povo da quebrada, ainda assim entende que não foi a melhor decisão. A porção humana do menino que queria ser Deus é essa capacidade da contradição, a que habita em todos nós, mas que ocultamos na nossa imagem especular e narcísica nas redes sociais. Djonga é um Deus humano, que deseja, que erra, que festeja, mas que, acima de tudo, sabe quem é seu povo, e escolheu viver sua vida perto dele, com todas as suas imperfeições.
O álbum que seguiu esse hiato e chegou em 2021 é um retrato da (in)digestão de tudo isso, de se ver NU, de se ver perdido, de se ver sacrificado em uma bandeja, de ver que tudo que fez pelo seu povo e não fala, por não ser fã do auto-proselitismo das redes, ficou esquecido ao tentarem reduzi-lo a um único episódio de sua carreira. O álbum começa com a faixa Nós e termina com a faixa Eu, outra vez a dualidade de estar cercado de gente e, ao mesmo tempo, sozinho.
A faixa Nós abre um álbum com beats estralando, apesar do prelúdio melódico, em que alguém tenta convencer Djonga que a gente nasce sozinho e morre sozinho, como tentaram isolá-lo, ele se nega a aceitar essa posição, afirmando sob graves e um coro de fundo que até aqui tudo foi por nós / é nós, é nós. Seja nós o plural com os seus, sejam os nós que ainda tentam prender sua caminhada.
Do topo viu o pior das pessoas e da fama e não hesitou em mostrar as falhas nesse mapa. Sejam os seus que criticam sua fama, dizendo que ele se esqueceu de nós e que ele retruca, então vamo morrer junto na merda e gritando: é nós! Sejam os que se dizem de esquerda e falam de reinserção, mas agem igual polícia. Nesse recorte de tempo, de policiamento virtual e hipocrisia, Djonga acordou herói e dormiu inimigo. No entanto, ele não se deixa obliterar pela bruma da internet, não esquece qual a real causa da sua luta,
Pelos preto eu tô e fé, pelos preto eu tô até
O dia que a bala atravessar no peito
Desde que nós tá no pré, sobre a gente eles têm conceito
Ele desenvolve o álbum - o melhor local para um artista se justificar, explicar suas ideias - seguindo a exposição dessa realidade, do que estava por trás. Em Ó Quem Chega, ele repara em quem quer chegar agora e já sentar na janela, conta do tempo que deu da cena, para outros moleques brilharem, o que em nenhuma medida cancela a sua história já consolidada. Isso, o que já fez, o que já correu dessa maratona, o vacilão não seria capaz de ver.
Em Xapralá ele desacelera em tom mais confessional, em voz menos rasgada. Volta para a reflexão sobre a superficialidade e hipocrisia das relações, sobre o fato de ainda Quem paga o pato é o cisne preto. Djonga estava no ápice da dualidade, fugindo de si para se encontrar, era a própria cura e a própria doença. O duplo ocupou lugar demais em si, deveria estar difícil achar o Gustavo.
Em Me dá a mão ele percebe que esse corre o fez acelerar demais e talvez o que precise é tirar o pé e dar a mão a alguém que o ame de verdade. O anti-herói também busca o que todos buscamos no fim do dia, ainda mais um anti-herói nos seus 26 anos, que já foi herege, Deus, ladrão, rei, dono da área, falcão, ufa! Respira, Djonga.
Em Vírgula é Djonga quem aparece, o que anda virgulado (gíria para usar Nike) para se lembrar que a sua vida não tem ponto final. É a música para curtir, porque Djonga é o duplo que curte e divide (ou disputa?) espaço com o Gustavo, filho da dona Rosângela. Em Ricô, ele retorna com a crônica do dinheiro, acelerando com o carro, as notas e tudo mais que o dinheiro compra. Ele compra, mas também leva, pelo crime, pela desigualdade, pelo vazio que ele deixa no lugar. Em dá pra ser ele segue na estrada, mas agora só tem uma companhia, quem não precisa de um colo?
O álbum fecha com a faixa Eu onde a narração do William Bonner, na matéria em que ele apareceu no Jornal Nacional, e se confunde com a narração de matérias que criticaram o seu show no Complexo da Maré. Nessa faixa, a sensação de ser só eu bate forte. Tô numa casa grande cercado de amigos / Amigos? Só tô numa casa grande, o verso de abertura dá o tom. Gustavo percebe que, cuidando dos outros, esqueceu de si, a conta chegou. Percebe que o preto em evidência será muito mais caçado que qualquer um, como foi com Simonal. Album curto, direto e reto, a síntese de meses em que Djonga e Gustavo tiveram que se sentar e conversar novamente.
Em 2022 Djonga voltou para avisar, tô bem, rompendo a tradição, foi 13 de outubro. 2021 também teve seus pesos, mas a lição dos buxixos foi justamente voltar a atenção para o cuidado de si, da sua saúde física e mental. Cuidar de si, para estar bem ao cuidar dos outros. Isso se refletiu na sua forma física e no que dizia no álbum com a identidade clara, em contraste ao sombrio NU, que o precedeu.
Djonga, agora o Quixote, percebeu que, muitas vezes, estava tacando cóqueteis molotov em moinhos de vento. Na faixa Dom Quixote, ao som do sample de um violino melancólico de fundo, ele reflete sobre as vozes ao redor de sua cabeça dizendo que essas rimas não vendem mais, mas enxerga que nas histórias dos três porquinhos, sua casa é a de cimento, à prova de vento (e de cancelamento). É visível o quanto ele chegou em forma nesse álbum, firmou a base e os socos acertaram em cheio. Ele mesmo pontua no fim dessa faixa, a fama é um detalhe no castelo que ele ergueu:
Mano entende ninguém aqui te tirou?
É você que não soube se colocar
Quando eu fiz NU achava que era fraco
Porque não consegui me adaptar
Só que eu vim pra ser pedra no sapato
Fama fica pra tu vai precisar
Em contatin Djonga aparece, sem preocupação, para curtir. O tom de romance é reforçado belo beat gingado do Rapaz do Dread e o vocal do Vulgo FK. O som com ecos e efeitos do auto-tune dão o tom de festa. Em bala fini, Djonga assume o caráter anti-herói com deboche, é o baile da sua área, dá para sentir que ele soltou as pernas nessas faixas, Coyote também não economizou na batida fantasmagórica. Em quase tudo, Gustavo puxa as rédeas do Djonga festeiro, pricipalmente na responsabilidade afetiva que ele esqueceu no baile. O beat traz essa atmosfera de manhã ensolarada, Coyote deve ter tido uma boa noite de sono, acordado e criado essa.
Então chegamos à faixa conversa com uma menina branca, talvez a mais marcante do álbum. Djonga adianta um assunto que agora em 2025 veio com força total, a pessoa branca (normalmente de classe média) querer fazer com que todo o assunto se torne sobre ela, fazendo o cosplay de pobre sofredor, normalmente lançando mão de algum aspecto da militância que lhe convém.
A menina branca é esse arquétipo que, muitas vezes, quer a fama de ser sofrida, mas em nenhuma medida que ser incomodada com a realidade ao seu redor, a dos pobres que não têm escolha e a dos pretos que não são escolhidos. Djonga mostrou, mais uma vez, que a sua relevância só aumentou com o tempo. Principalmente na era em que o rap foi povoado por músicas que se preocupam muito mais em viralizar no tiktok e ostentar itens de luxo ao invés de refletir sobre aspectos da sua cor e da sua classe.
Eu tive uma conversa com uma menina branca e poucas
E, com 25, ela vendeu droga pra comprar umas roupa
E eu que vi com 13 meu primo tipo na vida loka
Com 25, já teria 12 anos de bocaEm uma conversa com uma menina branca
Ela disse que odeia as cantada no busão
É nojento, eles passam a mão, que não anda mais de busão
E a moça da área que foi abusada no busão
Enquanto o caso tá em apuração ainda é cobradora no busão
Outra faixa de destaque no álbum, no clima de romance, e que ganhou um belo clipe, foi Penumbra. Nela, há a primorosa contribuição vocal da Sarah Guedes (que já se destacava desde os idos de 2010 na saudosa Batalha da Pista). Além das porradas do Djonga, é importante que o Gustavo apareça vivendo bem, como qualquer homem e mulher preta, o direito a ter conforto e a descansar.
Assim concluímos quase 3/4 dessa caminhada. Seis anos e seis álbuns, não é fácil acompanhar o Djonga, ele não para de correr. Não há dúvidas que ele consolidou um legado no rap nacional, fazer isso nos seus vinte anos, vindo de onde veio, não é nem um pouco banal, com metade ele já seria uma lenda.
Em 13 de outubro de 2023 ele lançou a mixtape Inocente, um belo trabalho, mas, a meu ver, fica claro que não se tratava de mais um álbum, não à toa ele deixou o nome seguido de “demotape”, era outra experimentação de Gustavo. Como o seu trabalho é extenso e memorável optei por focar nos álbuns, mas recomendo muito que ouçam Inocente, é o Djonga mais leve (entre muitas aspas, pois ainda é o Djonga), tomando sorvete, uma identidade toda mais despretensiosa, tons pastéis, mas ainda assim um belíssimo trabalho, que é a sua marca e com o qual ele produziu uma turnê. O poder do artista é fazer algo trabalhoso com tanto esmero, que fica parecendo fácil, mas que, bom, sabemos que não vamos conseguir fazer isso em casa.
CAPÍTULO 4 - ELE CONTINUA COM MUITA FOME
A pausa nos álbuns em 2024 acendeu um alerta, mas, conhecendo o trabalho do artista, era um alerta positivo, o que estaria Djonga tramando nos estúdios da cidade? O que Coyote, calado, como sempre, não estaria aprontando com samples e equipamentos por aí? E o Rapaz do Dread, hein? O que será que estava escondendo? Os meses se passavam e a curiosidade aumentava, quando viria o sétimo álbum? Ele viria?
Então, em 13 de março de 2025, um símbolo especial do retorno à tradição de lançamentos, ele chegou, o que para mim talvez seja o melhor trabalho do Gustavo até hoje e que veio para colocar o Djonga junto ao cânone da música brasileira, Quanto Mais Eu Como, Mais Fome eu Sinto.
Há tanto o que se dizer, que fica até difícil saber por onde começar. Isso, pois, escrevo após apenas dois meses do lançamento, imagino como será poder observar esse álbum como os demais, com o amadurecimento dos anos. Sinto que a digestão, com o tempo, vai produzir uma leitura bem melhor que essa, mas vou elencar alguns pontos que trazem uma riqueza monumental a esse álbum.
O tema: No senso comum, a fome remete à escassez, à falta, não é nesse sentido que Djonga usou esse tema, afinal, os anos de trabalho lhe deram abundância material e de sentido. A partir de um ìtan (do iorubá, história, lenda) de Exu que ele recita no fim da primeira faixa do disco, FOME, ele desenvolve a ideia dessa fome que ele ainda sente. A fome de Exu, segundo o ìtan, seria uma fome incontrolável, que já nasceu com o Orixá filho de Iemanjá e Orunmilá, ele comia tudo e quanto mais comia, mais fome ele sentia. Devorou tudo que via pela frente, temeram que devorasse o mundo, devorou a própria mãe, até que Orunmilá desferiu-lhe um golpe que o partiu ao meio, do que surgiram outros dois Exus, ele repetiu golpes e, de cada golpe, surgiam novos Exus. Até que, não havendo solução com os golpes, eles entraram em um acordo, Exu devolveria o que comeu, Orunmilá cessaria os golpes, cada Exu que surgiu dos golpes iria pelo mundo cuidar de um homem e do seu Orixá protetor. Por ter comido de tudo, nada é estranho a Exu, no que diz respeito à natureza humana, a sua fome lhe trouxe a compreensão do mundo, o que ele comeu faz parte da sua natureza profunda. Djonga tem fome, e isso não é algo ruim, ter fome é ter vontade de ter contato com o desconhecido, sentir novos sabores do mundo, que é o que nos torna mais generosos com o que não conhecemos. Que bom que ele não perdeu sua fome.
A estrutura: Com 12 faixas e 45 minutos, esse é o álbum mais longo do Djonga, em termos de minutos. Não acho que isso seja um detalhe banal, é mais um dos sinais que ele queria apresentar um projeto canônico, para figurar como um grande feito da sua discografia, ainda mais nesses tempos de Tik Tok que tem diminuído consideravelmente a duração das músicas, feitas para viralizar. Os beats, ainda que com alguns samples mais swingados, são mais sóbrios, fica clara a ideia de que esse veio para ser um álbum com uma proposta séria, o que é curioso é que metade dos beats são do Coyote e metade do Rapaz do Dread, e eles casaram como luvas. Além disso, ele lança mão de belos vocais em coro, o que traz um tom clássico para muitas faixas. Ou seja, esse álbum carrega uma estrutura densa, pois, após todos esses anos, Djonga gostaria de lançar algo que seu público ainda precisasse ouvir e isso, certamente, levou tempo e demandou pesquisa.
As participações: Não é novidade a presença de participações ilustres nos álbuns do Djonga, sejam elas estrelas da música ou artistas de Minas que estão despontando na cena. Nesse álbum, porém, há três participações que creio que contribuem para situar Djonga na história da música brasileira. São três participações de três gerações da música brasileira e, claro, mineiros, como não poderia deixar de ser. Milton Nascimento, Samuel Rosa e RT Mallone. Milton, que é uma divindade da música mundial, representa o Olimpo da música, quem diria que o menino que fez a capa de Heresia, em homenagem ao Clube da Esquina, cantaria com Milton, essa participação certamente selou duas pontas muito importantes da carreira do Gustavo. Além disso, Milton representa o clássico, a fundação da música, a marca de sua geração e a marca de Minas no mundo, com o seu álbum marcando história na década de 70.
Samuel Rosa, com o Skank, tem uma representação forte dessa geração seguinte, da década de noventa, anos dois mil, na música brasileira e mineira. Nós, na casa dos trinta anos, vivemos nossa adolescência ouvindo Skank nas rádios, na televisão. A faixa com Samuel Rosa tem todo o espírito desse Skank que fica na nossa memória afetiva. Para quem é mineiro, principalmente, o Samuel Rosa tem uma imagem muito simbólica tanto nas músicas que marcaram nosso crescimento, quanto no gosto pelo futebol (cruzeirense), que são paixões muito representativas para os mineiros.
Na sequência do álbum e da cronologia da história da música (não creio que seja por acaso), há a participação do RT Mallone. Se você não o conhece sugiro que assista à série Nova Cena em que o Djonga foi jurado e o RT participou. Eu tive a sorte de conhecê-lo alguns anos atrás, em Juiz de Fora, pois é amigo em comum dos meus amigos da banda juiz-forana Soul Rueiro. RT além de ótima pessoa, é um excelente MC (ou rapper, como queiram) e era questão de tempo que estourasse. Após a série, seus caminhos vem se abrindo, e eu aposto fortemente que ele será reconhecido como um grande nome do rap, como Djonga foi, daqui alguns anos (espero estar lá para escrever outro compêndio, sou fã dele). Ou seja, RT é a atual geração da música.
Djonga, desse modo, está situado na história da música:
Milton Nascimento (décadas de 70, 80, infinito) » Samuel Rosa - Skank ( década de 90, anos 2000) » Djonga (anos 2010, 2020) » RT Mallone (2025 e além!)
As letras - aqui é um show à parte, é onde o Djonga joga solto e onde eu mais me divirto ao analisar, ir e voltar nas referências, na construção das rimas. Porém, diferente do que fiz nos demais álbuns, como esse está fresquinho, não vou estragar a surpresa para você, leitor. Nesse tempo, onde tudo é feito às pressas, acelerado e mal digerido, deixo essa sugestão: em um sábado de manhã, coloque esse álbum no fone e escute com calma, vai dar uma volta. Ainda vou voltar nele para que possamos conversar, mas o que é bom, o que é realmente bom, precisa ser digerido, para matar (ou aumentar) a FOME.
Gustavo produziu Djonga. Djonga permitiu que Gustavo continuasse existindo. Essa disputa, essa parceria dos dois, produziu um dos maiores artistas da minha geração.
Djonga inaugura a turnê do seu álbum nessa sexta, em Belo Horizonte, como deveria ser.