Antes, um recado,
Querida pessoa leitora, bom dia! Estou aqui naquele espírito de “que semana! Capitão, hoje é quarta…” e, novamente, por motivos de CLT não consegui concluir o texto inédito que estou produzindo. Como ele se baseia em um livro que estou lendo, vai precisar de mais uma semana de lapidação, mas prometo que vai valer a espera. Aproveito a ocasião, novamente, para deixar um texto que publiquei no medium, anos atrás, mas que gostaria de trazer para esse repositório também, pois é aqui que a comunidade de leitores está dando liga. Um abraço e força, que metade da semana já foi.
Existem certos costumes na casa do pobre que compõem toda uma estética de soft-power dentro dessa grande e complexa massa popular brasileira, certos costumes que criam sistemas hierárquicos nos bairros periféricos das regiões metropolitanas, em que aqueles que se sobressaem por algum motivo, tornam-se detentores de uma espécie de poder invisível e protagonistas dos romances e dramas que se desenrolam nessas zonas marginais do país.
No campo das donas-de-casa, a expressão desse poder pode se dar pelo asseio, expresso no aroma de Pinho Sol e Veja que invade a casa após a faxina, na decoração com flores de plástico garimpadas nas lojas de 1,99 para compor arranjos melhores e diferentes dos confeccionados pelas vizinhas, nas imagens sacras de gesso, como santos, anjinhos pelados ou até não-sacras, como cachorrinhos, casais de idosos, porta-lápis e os bons e velhos porta-retratos com frases. Disputam lugares nas prateleiras as imagens de “melhor mãe do mundo”, “saudades eternas”, “I s2 U” e outros recados de ode à vida e à morte, sempre amparados por paninhos com bordas finalizadas em renda, que adornam as prateleiras das donas-de-casa desse Brasil.
Minha vizinha era o retrato dessa estética com um toque de obsessão a mais, expresso pelo hábito de colecionar coisas. A cunhada, que morava na mesma rua e antes era sua amiga do peito, por alguma desavença familiar se tornou sua inimiga e, como aquela colecionava cartões telefônicos — que já foram artigos de estimadas coleções Brasil afora, e realmente era uma coleção admirável —, minha vizinha se via consumida pela necessidade de produzir uma coleção mais interessante. Ela até tentou uma coleção com cartões também, à maneira da cunhada-inimiga, mas a coleção da rival era realmente invencível.
Como já possuía alguns vasos e um certo talento para a jardinagem, a vizinha resolveu expandir a sua coleção de plantas. Movida em — pequena — parte pelo interesse nas plantas e — em maioria absoluta — pelo desejo de supremacia sobre a então inimiga, abarrotou todas as varandas ao redor da casa com vasos e mais vasos de incontáveis tipos de plantas, com e sem flores, com os nomes dos mais diversos possíveis, dos quais se vangloriava principalmente quando o visitante não conhecia ou se surpreendia com o formato de alguma flor, o caso, por exemplo, da planta “peixinho” que produzia, de fato, flores similares a um pequeno peixe-palhaço.
Ela e minha mãe eram amigas e até aí eu vivia a minha pré-adolescência despreocupada com as suas obsessões e plantas e cunhadas, visitando vez ou outra sua casa para vigiar seu filho pequeno, ignorando todo o resto e torcendo para que o serviço de babá não-remunerado terminasse logo e eu fosse brincar na rua. Porém, foi em uma dessas férias de região metropolitana em que nossas mães nos colocavam para limpar azulejos e escapávamos em busca de uma brincadeira na rua ou quem sabe dar o tão sonhado primeiro beijo, que um sobrinho dessa vizinha veio passar as férias em sua casa.
Nesse ponto, vale um parêntese, o soft power da beleza já era exercido por um grupo de meninas na rua que usavam os tais shortinhos jeans com strass, obviamente eu não possuía essas estimadas peças de vestiário e, mesmo que as possuísse, não era esbelta como se exigia na época para caber naquelas perninhas minúsculas com cós baixo para exibir os tais piercings de strass que, claro, eu também não poderia possuir. Desprovida desses elementos da beleza juvenil, como, o também adorado na época, aparelho com borrachinhas coloridas, não me restavam muitas estratégias para imergir nesse tortuoso mundo do primeiro beijo, tal qual um pique-garrafão, e os garotos da rua já devotavam seus interesses para o grupo das meninas populares. Desse modo, com a chegada do sobrinho forasteiro, pensei que poderia ser a minha chance, tendo em vista a proximidade das casas e da minha mãe com a sua tia, nossa, a partir de então, querida vizinha.
Ali eu começaria a desenvolver a tal habilidade com as palavras, pois desenvolvi todo um léxico sobre plantas e flores e cuidados, para elogiar a gloriosa coleção da vizinha, entre flores-de-seda, dedos-de-moça, violetas, fortunas, begônias, antúrios, tulipas, procurava sempre a oportunidade de elogiar o amor-perfeito torcendo para que o garoto despertasse do entretenimento com tazos ou bolas-de-gude e percebesse que aquele projeto de poetinha endereçava o chamego para ele.
É claro, ele não levantava o olho do jogo do tapão, temendo que o amigo roubasse seus exemplares das figurinhas do kaká ou do zidane e tudo acabasse em uma grande briga sobre “melou ou não melou”, quando um dos amigos roubava no jogo, passando saliva na própria mão com a língua, para que a figurinha grudasse e virasse quando o outro não estivesse olhando. Tais fatos já foram motivo de grandes brigas nas escolas municipais, naquela época.
Como a maioria das tentativas de flerte na minha vida, fiquei muito amiga dele. Os dias corriam e com eles se aproximava o fim das férias e da minha chance de perder a tal boca virgem. A gente brincava todos os dias e naquele meu coraçãozinho ainda intacto das agruras da vida, como tentativas frustradas de atendimento no telemarketing, eu realmente acreditava que conseguiria alcançar o sucesso e que, uma hora, o rapaz ia perceber o meu interesse. Isso, claro, sem falar absolutamente nada, a não ser que tivesse um interlocutor para levar a notícia que só poderia ser dada por terceiros, era o código de ética da pré-adolescência, jamais falar você mesmo sobre o que está sentindo.
A essa altura eu já havia decorado toda a sequência de plantas da casa da vizinha, sabia os vasos de cor e até ajudava com alguma jardinagem, logo eu que tanto odiava quando minha mãe me pedia para podar seu sem-número de samambaias, agora me demorava cortando e selecionando folha por folha, torcendo para que o garoto, enjoado da tarefa, finalmente percebesse que uma possível solução para o tédio fosse beijar aqueles meus pequenos lábios ressequidos do sol do verão e sem dinheiro para protetor labial. Infelizmente ele continuava muito meu amigo, até me dava uns soquinhos, comuns entre amigos meninos, o que me levava a duvidar se ele, de fato, sabia que eu era uma menina. Precisava de um plano B antes do fim das férias.
Naquela mesma época, uma menina se mudou para a outra casa vizinha e ficamos muito amigas, as outras meninas não gostavam muito dela, principalmente as populares, mas eu, solidária como sou, me prontifiquei com a sua socialização, ela ficava muito na minha casa e fomos criando um laço forte de amizade. Mais tarde eu saberia que as outras meninas não gostavam dela pela sua beleza, que eu não conseguia compreender até ali e era uma informação realmente importante. Inocente e solidária, que são os temperos essenciais para se dar mal na vida, recorri à minha nova amiga, para que ficasse amiga do garoto também e me ajudasse com aquela procuração de plenos poderes sobre o meu desejo de dizer a ele que eu — rufem os tambores — gostava dele. Na minha cabeça era um plano perfeito, como são todos os planos quando ainda estão na minha cabeça.
Pois bem, assim ela fez, começou a visitar a casa da vizinha comigo e brincávamos todos juntos. Eu realmente achei que o plano estivesse dando certo, o garoto se mostrou mais interessado e ativo, já não ficava tanto no video game e fazia muitas perguntas para nós duas, até mais perguntas para mim, eram sobre a minha amiga, mas como ele falava comigo eu realmente imaginava com aquela cabecinha ainda pouco ciente das derrotas, que estava chegando perto do meu objetivo.
Passava os dias com eles e, de noite, ia para o portão da minha amiga comentar os bastidores. No começo ela estava animada, realmente procurava os tais sinais e estava otimista a meu respeito, mas foi perdendo um pouco de jeito, falando que talvez ele não fosse tão legal assim. Eu, resiliente e ainda capaz de sonhar, acreditava no plano, já pensava em escrever uma cartinha utilizando aquela folha de fichário colecionada, com desenhos da Jolie nas suas margens e caneta com cheiro de tutti-frutti. Parece que finalmente o meu dia ia chegar.
Já era a última semana de férias e, naquele dia, minha amiga disse que não ia poder brincar na casa da vizinha. Eu não acreditei, logo aquele dia, eu precisava dela para finalizar meu plano e ela finalmente falar com o garoto das minhas intenções. Fiquei revoltada, insisti, mas ela persistiu na versão de que estava doente, apesar de ter ido para escola normalmente, naquele dia. Como eu não perderia a chance de ver o garoto, fui sozinha mesmo.
Chegando lá bati no portão, ele veio correndo atender, abriu, me viu e seu sorriso se desfez,
— uai, cadê ela?
— tá passando mal, desanimou de brincar…
— ah tá, entra aí …
Pensei logo que ele achou ruim pois nossos jogos precisavam de três pessoas, aí ficaria desfalcado. Segui feliz pelas varandas de plantas, esperando alguma brincadeira que me permitisse ficar perto daquele garoto descolado e, quem sabe, tocar sua figurinha do Ronaldinho, ainda úmida da saliva dos seus lábios.
Infelizmente ele logo ligou o videogame e fixou os olhos na televisão. Eu não sabia bem o que fazer e nem porque todo mundo perdeu a graça da brincadeira naquele dia. Tentei jogar uma partida e demorei alguns segundos para perceber que a manete estava desconectada, felizmente ele estava muito concentrado e não percebeu o deslize. Ali ficamos por toda a tarde, em alguns movimentos mais bruscos eu tentava fazer o meu braço roçar no tecido da camisa do dragon ball que ele usava, mas a distância de um braço no sofá não permitia muito contato.
A vizinha nos chamou para o lanche da tarde, como de costume pegamos um pão com salame e um suco e fomos para o jardim, pois a outra obsessão dela era não sujar a casa e eu aproveitava para ficar a sós com o garoto, quase um piquenique romântico. Foi nesse momento que ele se aproximou mais de mim e meu sangue gelou, ele veio como se quisesse dizer algo que não poderia ser ouvido, eu pude ver seus lábios úmidos de lamber figurinhas chegarem perto do meu ouvido, enquanto ele fez um sinal com os olhos para que eu me aproximasse. Eu realmente não podia acreditar, meu coração palpitou, eu passei a língua nos lábios buscando alguma umidade naquele tempo seco e quente, foi quando ele se aproximou ao máximo e sussurrou,
— Aqui, será que cê podia falar com sua amiga que eu tô afim dela?
A massa de pão com salame formou um bolo na minha garganta, quando aquelas palavras alcançaram meus ouvidos, tive que sorver o suco Tang de manga de uma vez só, na esperança de que, com ele, fossem engolidas as lágrimas prestes a cair desesperadas e injustificáveis naquela face infantil, queimada de Sol. Eu acabava de assimilar o conceito da rejeição amorosa, infelizmente longe do chuveiro e de alguma música da Sandyjunior para amenizar a dor do amor que é sempre igual e as folhas caem no quintal. Diante do silêncio o garoto insistiu,
— Pode?
O tal espírito generoso e inocente respondeu, fingindo normalidade,
— Claro uai, posso sim.
Ao que ele voltou imediatamente para a sala para jogar videogame e eu permaneci ali diante daqueles duzentos vasos de plantas decorados durante longas conversas com a vizinha, que veio logo em seguida com uma tesoura na mão, apontando para sete vasos pendurados na viga da varanda.
— Minhas samambaias-choronas estão lindas, né, mas precisando cortar umas folhas secas, será que você pode cortar pra mim?
Com as lágrimas embaçando as folhas boas e as ruins me embrenhei naquele inferno verde, cortando indistintamente folhas secas e folhas novas. Os lábios úmidos e virgens ainda viveriam muitas outras férias de verão até conhecer o primeiro beijo. Dessa vez, foi apenas uma lição de jardinagem.
Oowmds tadinha kkkkk (sei bem como é)
Adolescência é uma porra