Antes, um recado,
Querida pessoa leitora, novamente eles , os bilionários da tecnologia, os novos senhores feudais desse tecnofeudalismo em que vivemos ou imperadores dessa nova era imperial (e eu novamente atrasada, perdão). Dessa vez é o anúncio da fusão do Sam Altman, criador da Open AI com o Jony Ive, criador da LoveFrom (que nome) e o principal designer dos produtos da Apple (iphone e cia), por meio da empresa “io”. Mais do que o conteúdo do anúncio, fui pega pela forma, a irritante forma do bilionário com “propósito” e a historinha que eles querem que a gente engula seco, de que eles estão criando Deus.
Pior que o bilionário, só o bilionário com propósito. Sinto falta do bilionário escancarado, com as roupas, os ternos caros, algo que o discernisse das pessoas comuns e mostrasse logo de cara quem ele é e ao que ele veio. Mas essa filosofia do bilionário com um propósito maior no mundo tem se disseminado nos últimos anos, sob a forma de palestras e peças de propaganda muito bem feitas, desenhadas para apresentar sob a forma de revolução do pensamento humano, algo que, pelo contrário, é criado para involuir e subtrair cada vez mais a nossa humanidade, acumular ainda mais capital na mão de meia dúzia de homens, sugar ainda mais os recursos naturais.
A bola da vez foi o anúncio pela Open AI da fusão de Sam Altam à io de Jony Ive(de onde vem as imagens dos dois nesse texto), empresa anunciada como sendo responsável por criar os novos dispositivos que serão utilizados para interagir com a IA no contexto da Open AI. Há tanto o que se dizer sobre essa peça de propaganda, compartilhada como um vídeo dos dois tomando um café em São Francisco (espero que o Coppola tenha ganhado dinheiro o suficiente com o uso do seu café, para se submeter a isso), que fica difícil eleger um início, mas vamos começar pela forma.
Nos são apresentados esses dois personagens, dois homens descritos como comuns, mas extraordinários, um raro visionário e um pensador profundo que uniram suas habilidades de visão e criatividade em uma AMIZADE que vai criar o futuro da experiência humana no uso da tecnologia. Eles estão em São Francisco, andando a pé, no meio do povão, uma cidade cujo furor criativo, em contraste com as dificuldades da topografia, confundem-se com o propósito desses dois personagens, que, em roupas comuns e em um dia qualquer, resolvem fazer esse anúncio disruptivo em uma … cafeteria?!
O caráter prosaico desse anúncio talvez seja o ponto mais irritante. Veja como somos simples, como somos como vocês, como nos vestimos, mas, ao mesmo tempo, como fomos humildes ao oferecer toda a nossa genialidade para criar o maior feito contemporâneo de tecnologia da humanidade. Não vão nos agradecer? Nem parece que foi um acordo de 6.5 bilhões de dólares.
Entre um expresso e outro eles contam como os produtos utilizados para acessar a tecnologia, hoje em dia, não conseguem abarcar toda a potencialidade do uso da IA. Como para usar o ChatGPT você ainda precisa abrir o computador, digitar e aguardar a resposta. Por esse motivo, eles estariam trabalhando juntos há dois anos em um “aparelho tecnológico” que, em essência, teria sido desenhado para diminuir a fricção no uso da tecnologia da IA.
Diminuir a fricção é um conceito da área de desenvolvimento de tecnologia, segundo o qual os aplicativos ou aparelhos devem ser desenhados para diminuir a dificuldade de acesso a ela. Na prática, poderia ser possível usar o ChatGPT por meio de um comando de voz de um objeto sempre ligado, ao invés de abrir um computador ou desbloquear o celular, por exemplo. Vejo a fricção, simbolicamente, como a nossa vida analógica e filosoficamente sou a favor dela, quero poder fechar o computador, como gostaria de só desligar o celular, ao invés de estar com a tecnologia mais ainda plugada no meu corpo, como uma extensão dele, ou saber que a câmera do aparelho de alguém que eu não conheço vai estar sempre ligada quando estiver apontada para minha cara.
No entanto, independente do que seja e caso seja efetivo esse tal aparelho, o que desperta minha curiosidade é a forma como tudo isso é apresentado, quase como uma religião. A escolha das palavras e o campo semântico que elas inspiram nos aludem ao divino, algo além da compreensão de meros mortais, como nós, sob o jugo do Deus AI. “O aparelho tecnológico mais legal que o mundo jamais terá visto”, “a maior revolução tecnológica da nossa vida”. Quando um homem me fala que tem uma coisa tão grande assim, a experiência me faz desconfiar logo de cara.

Essa forma dos tech bros de comunicarem seus feitos como religião parece não decorrer do acaso, pelo menos no caso Sam Altman. A jornalista americana Karen Hao, que realiza investigações nesse campo da IA e seus bilionários, lançou recentemente o livro Empire of AI: Dreams and Nightmares in Sam Altman's OpenAI que tem repercutido bastante nesse campo de compreensão do que realmente desejam os bilionários com essa ferramenta.
Ainda não tive acesso ao livro, mas dentre as várias entrevistas que a Karen Hao tem participado, em uma delas ela revela um pouco dessa ideologia empresário-religiosa do Sam Altman. Ele foi tutorado pelo Paul Graham (programador que fundou a empresa que mais tarde viria a ser o Yahoo!) e pelo Peter Thiel (empresário co-fundador do Paypal e da Palantir - empresa de análise de dados recentemente envolvida em uma notícia de que o Trump estaria interessado em negociar com a empresa para ter acesso aos dados de cidadãos americanos, o que daria a ele poder de vigilância considerável).
Esses mentores seriam responsáveis por vender para Altman a ideia de crescimento a-qualquer-custo e que a empresa que ele criasse deveria buscar pelo monopólio absoluto, pois competição seria para perdedores. Além disso, ela resgatou uma postagem do Sam Altman em um blog, em 2013, em que ele cita que “os empresários mais bem-sucedidos não se propõem a criar empresas. Eles estão em uma missão de criar algo mais próximo de uma religião, e em algum ponto descobrem que criar uma empresa é a maneira mais fácil de fazê-lo.”
Tudo isso se parece menos com o capitalismo convencional e mais com o ideal de se erguer um Império. Juntamente com o anúncio de outras gigantes da tecnologia nos últimos dias. De fato, eu me sinto como se estivesse assistindo a disputa imperial pelo domínio do Novo Mundo, como as Companhias das Índias Orientais europeias, disputando por quem monopolizava a rota das especiarias do Oriente e que, mais tarde, converteram-se nos impérios como conhecemos, Britânico, Português, mais tarde o Napoleônico, que usaram das grandes navegações para expandir seus territórios e monopolizar mercados.

A AI e a AGI (Inteligência Artificial Geral que supostamente vai chegar logo, como se vende que vamos logo colonizar Marte), apesar de serem vendidas com esse entusiasmo quase divino, como algo além da nossa compreensão humana, como algo que não teríamos sequer palavras para descrever, me parece muito menos uma ferramenta para melhorar a qualidade de vida dos seres humanos e mais uma caravela cheia de europeus carcomidos pelo escorbuto trazendo varíola para a América. E, claro, parafraseando Arthur Clarke, qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.
Esta sendo travada uma disputa campal para ver quem vai aportar primeiro no monopólio da IA, as big techs estão enlouquecidas por monopolizar não apenas a ferramenta, mas o conceito e tudo que se fizer com ela. Sam Altman quer que quando você pense em AI, você pense imediatamente em OpenAI, o mesmo desejam Elon Musk, o Google, a Microsoft, Zuckerberg.

Apesar de se vender como democrático, a democracia é o que os tech bros menos gostam, normalmente as instituições democráticas são os maiores obstáculos (ou a maior fricção) entre eles e um dos recursos que eles precisam para ampliar as suas próprias IAs, o banco de dados das pessoas. Por isso se interessam muito por financiar governantes que não se importam muito com a privacidade dos cidadãos e estão dispostos a flexibilizar essas regras desde que sejam eleitos. Não é coincidência nem bondade a proximidade deles com Trump, ele se tornou uma ponte para encurtar os caminhos até esse recurso.
O Estado Democrático também é uma ponte para a religião-império que querem fundar, pois apesar de se venderem como portadores-profetas dessa imensa responsabilidade, além da compreensão humana, de criarem Deus, eles precisam desesperadamente do financiamento cego dos Estados de centenas de bilhões de dólares para que alcancem esses objetivos o quanto antes e, se possível, antes dos seus concorrentes. Precisam de dados, infra-estrutura, recursos energéticos e, sem sombra de dúvidas, quem atravessar primeiro vai destruir a ponte.
Eles querem tudo, querem rápido e querem sem questionamento. O desespero maior é que a OpenAI, por ter assumido nesse início a cara da IA, mais uma projeção do que uma coisa em si, chegue antes nessa corrida e derrube outros imperadores pelo caminho. Para isso a OpenAI precisa vender a mitologia, a religião, enquanto posiciona os galeões e os canhões, nos bastidores.
- O que realmente é o produto que você vai me entregar?
- Você não teria nem palavras para descrever de tão estupidamente incrível…
- Mas o que é?
- Está além da sua compreensão humana…
- Tá, mas o quê?
e sumiu.

Não estou negando a ferramenta IA, não é uma tentativa ludista de queimar as máquinas, de fato o LLM da OpenAI é uma ferramenta útil e que pode ser usada (não para criar, e ela já deu provas que alucina), mas é isso, é uma tecnologia, não é Deus. A forma como Sam Altman está redirecionando as velas, com todo esse discurso de construir Deus, é uma maneira bem menos disruptiva e bem mais convencional de vender o ovo de ouro na cloaca da galinha, para conseguir os recursos e alcançar o monopólio do mercado como outras big techs já conseguiram, por métodos similares e já bastante conhecidos.

Bônus: essa entrevista da Karen Hao para o Adam Conover sobre o livro.
Nosso Platão do iPhone é careca me tirou uma risada boa kkkk. Ótimo texto! A ideia de bilionário com propósito é maquiavélica demais, sempre me impressiona como conseguiram construir algo assim, tão cruel e conveniente.
Todos os futuros parecem terríveis quando a gente considera pessoas como eles existindo e definindo coisas assim 🤡